Maio maldito. Transbordar, no mau sentido
Voltou a chover, e o barulho da chuva dói como milhares de agulhas. Como tem sido viver o drama das enchentes no RS.
Olá, pessoal.
Começo pedindo desculpas pela ausência, mas devido a tudo que tem acontecido no meu estado, o Rio Grande do Sul, fiquei inabilitada para elaborar pensamentos, e não tinha como escrever. Talvez passe algum erro de digitação, me perdoem.
A cada 20 gaúchos, 1 teve que sair de casa para se abrigar. A dimensão do problema é enorme, e não cabe nas telas e na velocidade das redes.
Vivi a situação abrigada, em minha casa, mas acompanhar a grande enchente e a dor de amigos próximos está sendo muito dolorido. Todos estamos tristes, com raiva, preocupados com amigos, conhecidos, além de ver a agonia de restaurantes, livrarias e museus. Perdi totalmente a concentração por vários dias. Depois de 1 semana, senti que era hora de desligar um pouco das redes e de me cuidar - pois só conseguimos ajudar e cuidar de outras pessoas quando estamos bem.
Ainda estou retomando a minha rotina. Voltou a chover forte ontem - parece que é a última chuvarada dessa leva com volumes altos. Os rios não estão subindo, mas a água do sistema do esgoto está colapsando, pois não consegue escoar. Difícil.
Reativei minha comunidade, trazendo várias notícias relacionadas a meio-ambiente, ESG e circularidade. Me voluntarei para ajudar a Aerolito. Eles desenvolverão um mapa de futuros para o RS, que será entregue à alta cúpula do governo estadual.
Sinto que, como pesquisadora e comunicadora, é meu dever pesquisar e falar mais sobre essas temáticas, cada vez mais urgentes. Para mudarmos os amanhãs, temos que transformar o nosso agora.
Agradeço ao carinho e solidariedade de amigos, colegas de trabalho e da pós, e ex-colegas de outros estados e do exterior. Sentir o calor vindo de vocês é um alento que reforça a nossa esperança de um Brasil melhor.
Alguns registros deste maio maldito que todo gaúcho gostaria de esquecer. Acho que ficou uma espécie de diário da Anne Frank das enchentes, sem querer comparar a experiência que ela viveu com a nossa... não temos a experiência da guerra, mas sentimos que estamos em uma grande batalha mesmo, que está apenas no começo.
1/05
A tempestade chegou no fim de abril, pelo norte e centro do RS. Tenho 1 amiga muito especial que mora em uma cidade perto do rio Jacuí. Em setembro passado, o local já havia sofrido muito com enchentes. Ela mora longe do rio, e não foi diretamente afetada. Mas como se desenhava um cenário ruim, eu já estava em contato com ela desde o feriado. Neste mesmo dia, ela me confirmou que estava ilhada, que várias cidades ao seu redor estavam em estado de calamidade.
Nesta quarta, já no preparávamos para a chuva que chegaria forte. Fui no supermercado com um amigo, e comprei água, alimentos, tudo que achei que fosse necessário pra ficar uns dias sem sair. Este anjo também me ajudou a terminar de instalar minha TV nova na sala. Isso fez toda a diferença nos dias de exílio.
3/05
Vi que teve um alerta para a região em que ela mora, na noite anterior (o governo emite alertas pras pessoas evacuarem bairros/cidades de noite, sempre tarde).
Falei com a minha amiga de infância. Não só a cidade tinha alagado, como a própria teve que ser resgatada de barco da sua casa - que outrora a abrigou -, só com a roupa do corpo. Pelo relato dela, a cidade estava embaixo d’água, e todos estavam em estado de choque, isolados.
Não sei explicar a tristeza que me invadiu, em Porto Alegre. Uma sensação de impotência sem tamanho… não poder abraçá-la, ajudá-la é muito ruim. Não vou escrever mais pois não quero invadir a privacidade dela. Estou tentando amá-la, confortá-la e apoiá-la da melhor forma possível.
Deve ter sido um dos finais de semana mais agoniantes do Rio Grande do Sul.
No sábado, tinha o show da Madonna. O Brasil é gigante, era nítido que a maior parte do país estava anestesiada com o final de semana, de uma forma hedônica. Considero isso normal, ainda mais com todo o calor que está fazendo na parte tropical do país. Levou mais tempo para quem não estar aqui ficar sabendo, e acho que a maioria talvez ainda nem consiga dimensionar o tamanho do estrago.
5/05
O nosso Mário Quintana faleceu em um cinco de maio, e ele viveu a famosa enchente do Guaíba de 1941, que aconteceu em Porto Alegre nestes mesmos dias de maio daquele ano.
Nesta semana, aos poucos, amigos e contatos de fora começam a me procurar para saber de mim e da minha família. A mídia começa a falar da catástrofe - nem sei se essa palavra explica o que vivemos. porque o que está acontecendo não é culpa da Natureza: está relacionado a múltiplos fatores e a falta de responsabilidade dos (des)governos (municipal, estadual e federal). Especialmente estadual e na esfera municipal.
Minhas colegas de trabalho de São Paulo ficaram sabendo no final de semana. Elas acompanharam o estado no qual eu me encontrava. Me senti como uma verdadeira “abobadinha da enchente”, termo cunhado na enchente de 1941, me avisem se precisar explicar. Me sinto culpada, afinal, estou segura, na minha casa, e passei pelos males, o menor. Também sinto uma culpa leve por ser privilegiada, ter passado alguns poucos bons momentos, apesar de todo este peso.
Todavia, a verdade é que quase ninguém aqui conseguia elocubrar, concatenar. Não só pelo volume de notícias, mas também porque a DOR está(va) onipresente no nosso amado Rio Grande. Não foi algo que nos arrebatou pelas notícias, Tik Tok e Instagram. Essa monstra enchente, essa água suja e contaminada invadiu nossas cidades, nossos lares, as ruas, as mensagens no celular. Amigos, desconhecidos, vizinhos, todos incrédulos, tentando confortar os seus, precisando de apoio.
Mas foi muito lindo ver a onda de solidariedade que tomou Porto Alegre e o estado. Desde o final de semana, centenas, quem sabe milhares de voluntários se mobilizaram para ajudar e em doações. Essa onda foi crescendo e está forte no Brasil todo, e sentir o apoio e amor de todos vocês tem sido fundamental para seguir. Obrigada.
99% das pessoas que vi ajudando, nas redes, não focou em política. Vi pessoas de ideologias distintas de mãos dadas trabalhando para salvar vidas. Ainda bem.
Tiveram pessoas do meu círculo que saíram correndo para a praia, alguns amigos que estavam presentes e se ofereceram para ajudar. Senti a presença da minha rede de apoio, como também me senti sozinha em alguns momentos.
6 a 7/05
Meu cérebro derreteu, por sorte a dona da empresa onde trabalho foi super compreensiva. Trabalho remotamente em uma empresa de São Paulo, e acredito que na maior parte do país, tudo deva estar “normal”. Aqui, olhamos pela janela e atmosfera está cada vez mais pesada. É uma sensação muito estranha, a de viver no paralelo, no lamaçal.
Tentei ser voluntária numa noite, já tinham voluntários demais, fui dispensada. O dia-a-dia pesado traz um senso de urgência: queremos ajudar e às vezes não podemos, ou não conseguimos.
Meu sono foi embora. Aliás, várias vezes dissociei (?), esqueci que dia da semana era, a data… não lembro bem em qual dia fiquei sem água, só lembro que tinha um pouco de água na torneira da cozinha nesta semana. Não tinha no banheiro, e tive que sair para tomar banho. Ou enforcar um banho que outro, usar lenço umedecido.
Ao longo destes dias, os rios da região metropolitana e o lago Guaíba foram enchendo. A partir daqui, fora as pessoas que precisaram de resgate, algumas ruas e prédios alagaram. Não completamente, mas em algumas situações, só restava sair de casa - boa parte da população ficou ilhada, sem água e sem luz. A solução foi ir para casa de parentes, amigos, casa de praia (o Litoral não foi tão atingido), abrigos…
Tenho 1 conhecida e pelo menos 4 amigos que estão passando por isso. Mas vi um fenômeno acontecer, que deve ter explicação: algumas pessoas paralisam e não querem sair de casa, mesmo sem água e energia elétrica. Demoram para sair, se arriscam.
Felizmente não fiquei sem luz.
9 e 10/5
Ganhei uma folga para reorganizar a minha vida: conseguir água, arrumar a casa de algum jeito, ir no super. Também pude ajudar neste dia, o que me fez muito bem: guiei um pessoal de Floripa que veio com uma lancha ajudar nos resgates (eles nunca tinham vindo a Porto Alegre). Visitei rapidamente o Gasômetro e o Pontal, áreas que eram pontos de resgate, que estão na beira do Guaíba. Doei, me doei e ajudei. No final do dia, notei que eu estava toda contraturada, fazia muito tempo que não ficava assim, com dor do pescoço ao pé.
Um amigo me convidou para ir à praia. A esposa dele tinha viajado a trabalho para o Chile, e não pode voltar pra PoA. Ela voltou pro Brasil por Florianópolis uns dias depois, e foi até o litoral. Fomos fazer companhia e buscá-la. Foi um convite inesperado, arrumei a mala mal. Mas foi um alívio dar esta escapada, sou muito grata a esse casal de amigos queridos. Esse ano começou bem agitado e não pude viajar neste verão. Fazia décadas que isso não acontecia.
Seguimos preocupados e ligados no assunto. Maio começou e parece que todo dia vivemos o mesmo dia, há exatos vinte e cinco dias. Tínhamos água encanada e mineral, vinho para entorpecer um pouco, um teto, comidas gostosas e uns aos outros. Tudo estava mais normal em Xangri-lá.
No sábado, a chuva voltou, trazendo o frio. Muita chuva, como jamais havíamos visto. Ainda estavam fazendo resgates, oramos e torcemos muito para que as pessoas e vários animais conseguissem sobreviver.
Tinha piscina aquecida lá e eu pude nadar no domingo. Nadei para me salvar, nadei em busca de respostas. Quem sabe, nadei em busca das vítimas, em um gesto simbólico e desesperado de conexão com os resgatados. Me alonguei, respirei, fiquei na posição fetal.
13 a 15/05
Esse respiro na praia veio na melhor hora, mas foi muito bom voltar e me perceber mais disposta e ativa no trabalho. Mais centrada. Ainda não to rendendo 100%, mas já consigo me concentrar. Várias bombas de água de Porto Alegre não estão funcionando por falta de manutenção, e a estação que fornece água para o meu bairro ainda tem um motor com problemas. Além da função, é muito complicado ficar sem água: se organizar para um banho theco ou na casa de alguém, a busca por água (potável e para a descarga, louça), lavar a louça, manter a casa arrumada, limpinha.
Está difícil encontrar água mineral e a minha privada sucumbiu - minhas obras estão demorando mais para descer. Comprei um diabo verde.
Estou com raiva da falta de água, do prefeito, do descaso conosco. A tristeza não passa e a indignação vai aumentando.
17 a 19/05
Acordei com água na torneira da cozinha, finalmente!!! Reestabelendo a dignidade. Mas na hora que tentei tomar banho, já não tinha água no banheiro. Estamos racionando para encher a caixa d’água.
Vi uma amiga taróloga e astróloga e ela fez a mandala e mais um jogo pra mim. Foi ótimo.
No sábado, dei sorte e a minha faxineira estava livre. Rolou aquela limpeza, hoje tomei banho mais cedo pra garantir. Um alívio, sensação de lar doce lar de volta. Fiquei em casa até segunda, eu acho.
No domingo, lavei meias e algumas roupas. Minha irmã veio me visitar com o meu sobrinho. Fazia semanas que não os via, foi muito bom. Quando eles saíram, coloquei uma série na TV, e deitei no sofá. Dormi 3 horas, algo nada usual para mim, quando acordei, já à noite, percebi o quanto estava cansada.
20/05
Me noto bastante sentimental, me abri para algumas poucas pessoas nos últimos dias. Uma delas é alguém que está no meu pensamento e coração, e não sei ainda o que vamos nos tornar.
Pra quem mora longe, talvez fique mais difícil de compreender. Só posso dar o contexto. Mesmo quem está bem e segura está fragilizada e assustada.
21/05
Nesta semana, a vida parece ir retomando, e o estado entra em outra fase - limpeza, reconstrução, fase 2 nos abrigos.
O volume de água entrando na nossa caixa d’água está praticamente normal, esperamos que siga assim. Mas não vai dar pra lavar muita coisa, vem tempestade por aí.
Como já choveu muito e os rios estão cheios, vai ser difícil a água escoar, acho que algumas ruas e bairros vão alagar novamente. As autoridades estão perdidas, a sensação é de que estamos abandonados.
A polarização política está em alta, há muito tempo. Um país sem líderes, que na minha humilde opinião, estava melhor no início do século XX. Hoje, absolutamente tudo é altamente polarizado e isso está fazendo mal a nós mesmos. O nosso futuro depende da Ciência, das pessoas, do Design e da nossa habilidade, como cidadãos, de dialogarmos pelo bem comum, pelo bem de todos. Apesar das diferenças, que seguirão existindo.
Além disso, as mudanças climáticas já chegaram. O Brasil não está pronto para o que pode estar por vir. Precisamos começar a repensar as cidades, a agir e a nos planejar.
Se cuida 😘